Um Fotógrafo às Terças – Masahisa Fukase

Regressamos em Setembro à rubrica “Um Fotógrafo às Terças“, que continua com a curadoria de João Jarego, a quem agradecemos a continuidade da partilha desta viagem fotográfica.


Masahisa Fukase, fotógrafo japonês nascido em 1934 na ilha de Hokkaido, a mais setentrional do país. É dele a obra que um painel de especialistas consideraria em 2010 o melhor livro de fotografia publicado nos últimos 25 anos.

Masahisa Fukase faz parte da “geração perdida” de japoneses nascidos antes do início da segunda grande guerra e que amadureceram numa nação derrotada, devastada e humilhada.

A sua família tinha um estúdio fotográfico na pequena cidade de Bifuka e, aparentemente, sempre terá querido ser fotógrafo e acabou por vir estudar fotografia na Universidade Nihon em Tóquio, tendo concluído os estudos em 1956. Começou por ser fotógrafo comercial, assegurando assim um rendimento estável, ao mesmo tempo que trabalhava em projectos mais pessoais. As suas séries “Oil refinery skies” e “Kill the pigs” (uma ilustração brutal de um matadouro) foram as primeiras a ser expostas publicamente, em 1960 e 1961 respectivamente. As imagens desses seus primeiros trabalhos são virtualmente impossíveis de ser encontradas.

No início da década de 1960, Fukase casa. Com essa mudança da sua vida, altera-se também o objecto da sua fotografia, focando-se – literal e metaforicamente – na sua mulher, Yukiyo Kawakami. Daí resultaria o livro Yugi, hoje – como todas as obras de Fukase – objecto de colecção raro. E caro. O seu primeiro casamento teve uma duração curta e, em 1963, une-se a Yoko. Durante os 13 anos que o casamento durou, Fukase fotografaria de forma obsessiva Yoko. Foi essa também a duração do seu projecto fotográfico publicado com o título homónimo da sua esposa. Yoko entra no jogo. Veste-se. Traveste-se. Posa. É caracterizada para parecer mais velha. Na exposição “New Japanese Photography Exhibition”, em 1974 no MoMA, surge sentada vestindo um kimono enquanto os VIPs passam por ela, alheios à sua presença e à sua participação nas fotografias.

Para Fukase, a câmara terá sido um instrumento para obter controlo sobre o mundo exterior e, especificamente, Yoko, que era grande parte desse mundo. Nas suas próprias palavras, “Eu trabalho e fotografo na esperança de parar tudo”. Uma rebelião contra o tempo, contra a incerteza, acrescento eu. Se todo o acto de fotografar é uma forma de congelar o tempo, para Fukase, essa acção tem um fundo mais sombrio e obsessivo que resulta do desejo de acreditar que, por essa via, o tempo pode realmente ser parado. E Yoko ser, para sempre, sua. Fê-lo com Yoko, como já o tinha feito com Yukiyo. Este escrutínio constante terá esgotado Yoko e estado da origem da sua decisão de deixar Fukase. Ela viria a descrever a vida com Fukase como “um tédio sufocante interrompido por momentos de excitação violenta e quase suicida”.

Yoko deixa-o em 1976. Fukase começa a beber excessivamente e mergulha numa depressão profunda. Em 1992 teve uma queda quase fatal nas escadas do seu bar preferido. Passaria os 20 anos seguintes em coma, até falecer em 2012. Neste seu longo limbo – e embora Fukase tivesse casado uma terceira vez – Yoko visitou-o regularmente. “Ele continua a ser parte da minha identidade,” disse ela, “Com uma câmara à frente dos seus olhos ele pode ser, mas não na sua ausência.”

Após a separação de Yoko e até 1982, ele produziria a série que o eternizou. O tal que foi considerado o melhor livro de fotografia publicado no último quarto de século.

Fotografou corvos. Com a mesma obsessão que anteriormente tinha fotografado Yoko. O trabalho seria publicado no Japão em 1986 com título de, simplesmente, “Corvos”. A edição inglesa (datada de 1991) foi intitulada “The solitude of ravens” (A solidão dos corvos). Este é um trabalho imenso e um marco na história da fotografia. As palavras são curtas para o descrever, na força telúrica da sua carga emocional (tão mais notável quanto a cultura japonesa ser tradicionalmente relutante da exposição pública de emoções). As suas fotografias cristalizam a solidão sombria destes anos, captadas a partir do lugar escuro e frio para o qual a depressão o remeteu. São um requiem escrito com imagens que falam uma linguagem apenas acessível a quem conheça a perda.

Fukase foi estruturalmente incapaz de ser feliz. E de fazer feliz quem amava – na sua forma muito particular e disfuncional. A tragédia da grande arte é, muitas vezes, esta. O artista sofredor é um cliché, mas os clichés têm uma razão para existirem.

Como em todas as obras que se erguem sobre os escombros da vida de um artista, há um elemento perverso de nos “alimentarmos” dela. Por outro lado é, talvez, a única forma de lhe dar um propósito.

Uma palavra de reconhecimento para a crítica que escolheu destacar este trabalho obscuro de um fotógrafo pouco conhecido no ocidente. Havia escolhas tão mais fáceis e “óbvias”.

Todas as imagens são extraídas do trabalho “A solidão dos corvos”.

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